Era um dia como tantos outros quando tudo aconteceu. Ainda tinha os lábios mornos do café escaldado e a sonolência bêbada de quem ficou até tarde a mandriar nas redes sociais. Trazia o telemóvel no bolso e os auscultadores nos ouvidos e foi então que, de repente, reparei no polícia fardado a escoltar a entrada do autocarro que me levaria para o trabalho.
– Bom dia – cumprimentei o Sr. Gilberto, o pacato motorista da majestosa viatura azul que
sempre me recebera com um aceno tão quente como a chávena fervente do café.
Olhei para o Sr. Gilberto, que me fitou com um olhar irado como o gelado. Senti um aperto no
estômago e perguntei-lhe:
– Está tudo bem?
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"Olhar Irado como o Gelado" |
Enquanto falava, estranhei ver a Clara, uma colega que me costuma acompanhar para o
trabalho, a sair apressada do autocarro.
– Vou chegar atrasada! – corria ela com o telemóvel na mão.
O Sr. Gilberto permaneceu impassível, enquanto o polícia se aproximava.
– Onde está? – indagou o agente. Intimidado, tirei o passe de autocarro do bolso e mostreilho.
Ele expirou uma lufada de ar vulcânico para a minha nuca, e o pânico apoderou-se de
mim. – O Livro, rapaz! Não viste as notícias? Precisas de ter um livro na mão para poderes
entrar no autocarro.
Na altura, duvidei da sua resposta, mas, sendo ele um agente de autoridade, insisti:
– Por favor, se eu não apanho este autocarro perco o emprego! Deixe-me entrar, e eu
prometo que lhe compro um livro. Vá lá! Estamos a uma semana do Natal...
O polícia deu uma gargalhada e deixou passar uma velha com um livro na carteira.
– Rapaz, acredita que nunca aspirei passar de polícia a porteiro, mas agora é assim. Trazes um
livro na mão ou um atestado médico que te ilibe de tal e podes entrar nos veículos públicos. Se
não o fazes, problema teu. Agora, sai! Temos de seguir viagem – exalou.
Sem tempo a perder, corri para a paragem de táxis. Durante a viagem para o trabalho, o
taxista explicou-me que o governo quer estimular a cultura da população e não viu melhor
forma para o fazer do que implementar algumas leis estimuladoras da consciência.
No trabalho, não eram poucos os livros abandonados pelas secretárias. Quis convencer-me
de que a lei estava condenada ao fracasso e de que só me tinha feito perder o dinheiro para o
almoço. Mal-humorado, pedi ao meu superior para participar na manifestação da próxima
tarde, e o homem deu-me licença.
– Isto é um atentado à sanidade pública! – dizia ele.
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No dia seguinte, não me esqueci de trazer um livro que tinha por casa. Cumprimentei o Sr.
Gilberto, e o maldito nem teve coragem de olhar para mim. O polícia deixou-me passar, e eu
fui sentar-me ao lado de uma rapariga com os olhos colados ao telemóvel.
– Fogo! – indagou ela para o aparelho. Tínhamos acabado de arrancar, quando o telemóvel
ficou sem bateria. Ela guardou-o na mochila e pôs-se a olhar pela janela. Lembro-me de ter
refletido que os livros, ao menos, não precisam de um carregador para fazerem um ambiente
animador.
Olhei para trás e vi dezenas de pessoas acompanhadas por livros. Poucas os liam, algumas
queriam atirá-los pela janela e muitas estavam-lhes gratos por já não precisarem de pagar o
passe do autocarro. Nessa mesma tarde, participei numa manifestação que contou com cem
mil portugueses. O governo, decidido a contrariar a estagnação do país, manteve
escrupulosamente a sua decisão.
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A dois dias do Natal, entrei com o livro no autocarro. O Sr. Gilberto recebeu-me com um
sorriso quente como a chávena fervente do café, satisfeito pelo polícia já não estar a barrar a
entrada aos seus clientes.
Sentei-me num dos assentos livres. No fundo do veículo, um grande grupo de leitores
mostrava o sucesso aparente da lei estimuladora da consciência. Eu ainda não estava
convencido e acreditei que, agora que o polícia tinha ido embora, as pessoas iriam largar os
livros nos cantos escuros da casa de onde os tinham ido encantar.
Mas isso não aconteceu. Na manhã seguinte, metade do autocarro lia com o coração numa
mão e o livro na outra. Batendo o pé, ainda indaguei com alguns colegas que, depois das férias
natalícias, tudo voltaria ao normal. Estava indignado pelo modo como as pessoas estavam a
submeter-se a esta lei absurda. Mal sabia eu o que estava prestes a vivenciar...
Nesse dia, véspera de Natal, fui jantar a casa da minha mãe. Foi a primeira vez que o
festejámos sem o meu pai. Ele lutou contra o cancro com brava postura. Pela minha mãe e
pela memória dele, reuni-me com a minha irmã e preparámos tudo. Ela cozinhou o bacalhau,
eu caprichei nos doces e, juntos, tratámos das surpresas.
A nossa mãe não sorriu com todos os dentes, mas sentiu-se amada por todas as frentes. À
meia-noite, trocámos regalos, e a nossa mãe entregou-nos dois embrulhos grandes e pesados.
A minha irmã abriu o dela com agrado, enquanto eu rasgava o papel, desconfiado. De repente,
a minha mãe levantou-se do sofá.
– O vosso pai queria dar-vos algo que fizesse parte dele, para vocês o poderem recordar – ela
respirou fundo e reteve as lágrimas. Apontou para a prenda desembrulhada da minha irmã,
um aglomerado de livros velhos. – Ele escolheu-vos dez livros. Dedicou-te o romance de onde
retirou a tua alcunha, minha andorinha – disse, apoiando-se na minha irmã.
Ela limpou os olhos com a manga do casaco e veio ter comigo.
– Ele deixou-te dez bocados da sua alma. Uma dezena de obras sem nome e autor. Uma delas
foi escrita pelo teu pai... – ela abraçou-me com força, e eu envolvia com carinho. – Ele gostava
que tu as lesses, que descobrisses qual é a dele. Eu sei que não gostas de ler e sei qual é, se tu
não quiseres...
– Eu vou lê-las – antecipei-me, beijando-a na testa. Não sei quanto segundos passaram até a
minha irmã se juntar a nós e muito menos até quebrarmos o silêncio cheio de saudade e amor.
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No dia seguinte, levei um dos livros do meu pai para o autocarro. O Sr. Gilberto conduzia com
o cachecol que a mulher lhe fizera para o Natal, e a minha colega Clara lacrimejava ao devorar
os poemas que o marido lhe dedicara. Eles podiam não ter dinheiro para grandes surpresas,
mas têm paixão pelas subtilezas.
Eu sentei-me ao lado da jovem do telemóvel sem bateria. Desta vez, trazia umas almofadas
para aquecer as orelhas e lia um pequeno livro com letra graúda e imagens pretas.
À minha frente, duas mulheres conversavam, animadas, sobre a nova legislação:
– Sabias que os supermercados vão passar a fazer promoções exclusivas para quem comprar
livros nas suas livrarias? – indagou uma.
– Só falta oferecem carros a quem folhear uma revista! – brincou a outra.
Com um sorriso de orelha a orelha, abstive-me do que me rodeava e abri o livro na primeira
página: Para o Luís do pai.
Aproximadamente um quarto da população utiliza transportes públicos. Por outro lado, 100%
da população vai ao supermercado. Uma pedra pode mover montanhas. Uma regra pode gerar
façanhas.
Luís Telles do Amaral
PUBLICAÇÃO SEMELHANTE