Para partilhar o Natal contigo, aqui está um conto natalício exclusivo do nosso blogue. Espero que gostes e um grande Feliz de Natal 😉
Era um dia como tantos outros quando tudo aconteceu. Ainda tinha os lábios mornos do café escaldado e a sonolência bêbada de quem ficou até tarde a mandriar nas redes sociais. Trazia o telemóvel no bolso e os auscultadores nos ouvidos e foi então que, de repente, reparei no polícia fardado a escoltar a entrada do autocarro que me levaria para o trabalho.
 – Bom dia – cumprimentei o Sr. Gilberto, o pacato motorista da majestosa viatura azul que
sempre me recebera com um aceno tão quente como a chávena fervente do café.
 Olhei para o Sr. Gilberto, que me fitou com um olhar irado como o gelado. Senti um aperto no
estômago e perguntei-lhe:
 – Está tudo bem?
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| "Olhar Irado como o Gelado" | 
 Enquanto falava, estranhei ver a Clara, uma colega que me costuma acompanhar para o
trabalho, a sair apressada do autocarro.
 – Vou chegar atrasada! – corria ela com o telemóvel na mão.
 O Sr. Gilberto permaneceu impassível, enquanto o polícia se aproximava.
 – Onde está? – indagou o agente. Intimidado, tirei o passe de autocarro do bolso e mostreilho.
Ele expirou uma lufada de ar vulcânico para a minha nuca, e o pânico apoderou-se de
mim. – O Livro, rapaz! Não viste as notícias? Precisas de ter um livro na mão para poderes
entrar no autocarro.
 Na altura, duvidei da sua resposta, mas, sendo ele um agente de autoridade, insisti:
 – Por favor, se eu não apanho este autocarro perco o emprego! Deixe-me entrar, e eu
prometo que lhe compro um livro. Vá lá! Estamos a uma semana do Natal...
 O polícia deu uma gargalhada e deixou passar uma velha com um livro na carteira.
 – Rapaz, acredita que nunca aspirei passar de polícia a porteiro, mas agora é assim. Trazes um
livro na mão ou um atestado médico que te ilibe de tal e podes entrar nos veículos públicos. Se
não o fazes, problema teu. Agora, sai! Temos de seguir viagem – exalou.
 Sem tempo a perder, corri para a paragem de táxis. Durante a viagem para o trabalho, o
taxista explicou-me que o governo quer estimular a cultura da população e não viu melhor
forma para o fazer do que implementar algumas leis estimuladoras da consciência.
 No trabalho, não eram poucos os livros abandonados pelas secretárias. Quis convencer-me
de que a lei estava condenada ao fracasso e de que só me tinha feito perder o dinheiro para o
almoço. Mal-humorado, pedi ao meu superior para participar na manifestação da próxima
tarde, e o homem deu-me licença.
 – Isto é um atentado à sanidade pública! – dizia ele.
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 No dia seguinte, não me esqueci de trazer um livro que tinha por casa. Cumprimentei o Sr.
Gilberto, e o maldito nem teve coragem de olhar para mim. O polícia deixou-me passar, e eu
fui sentar-me ao lado de uma rapariga com os olhos colados ao telemóvel.
 – Fogo! – indagou ela para o aparelho. Tínhamos acabado de arrancar, quando o telemóvel
ficou sem bateria. Ela guardou-o na mochila e pôs-se a olhar pela janela. Lembro-me de ter
refletido que os livros, ao menos, não precisam de um carregador para fazerem um ambiente
animador.
 Olhei para trás e vi dezenas de pessoas acompanhadas por livros. Poucas os liam, algumas
queriam atirá-los pela janela e muitas estavam-lhes gratos por já não precisarem de pagar o
passe do autocarro. Nessa mesma tarde, participei numa manifestação que contou com cem
mil portugueses. O governo, decidido a contrariar a estagnação do país, manteve
escrupulosamente a sua decisão.
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 A dois dias do Natal, entrei com o livro no autocarro. O Sr. Gilberto recebeu-me com um
sorriso quente como a chávena fervente do café, satisfeito pelo polícia já não estar a barrar a
entrada aos seus clientes.

Sentei-me num dos assentos livres. No fundo do veículo, um grande grupo de leitores mostrava o sucesso aparente da lei estimuladora da consciência. Eu ainda não estava convencido e acreditei que, agora que o polícia tinha ido embora, as pessoas iriam largar os livros nos cantos escuros da casa de onde os tinham ido encantar.
 Nesse dia, véspera de Natal, fui jantar a casa da minha mãe. Foi a primeira vez que o
festejámos sem o meu pai. Ele lutou contra o cancro com brava postura. Pela minha mãe e
pela memória dele, reuni-me com a minha irmã e preparámos tudo. Ela cozinhou o bacalhau,
eu caprichei nos doces e, juntos, tratámos das surpresas.
 A nossa mãe não sorriu com todos os dentes, mas sentiu-se amada por todas as frentes. À
meia-noite, trocámos regalos, e a nossa mãe entregou-nos dois embrulhos grandes e pesados.
A minha irmã abriu o dela com agrado, enquanto eu rasgava o papel, desconfiado. De repente,
a minha mãe levantou-se do sofá.
 – O vosso pai queria dar-vos algo que fizesse parte dele, para vocês o poderem recordar – ela
respirou fundo e reteve as lágrimas. Apontou para a prenda desembrulhada da minha irmã,
um aglomerado de livros velhos. – Ele escolheu-vos dez livros. Dedicou-te o romance de onde
retirou a tua alcunha, minha andorinha – disse, apoiando-se na minha irmã.
 Ela limpou os olhos com a manga do casaco e veio ter comigo.
 – Ele deixou-te dez bocados da sua alma. Uma dezena de obras sem nome e autor. Uma delas
foi escrita pelo teu pai... – ela abraçou-me com força, e eu envolvia com carinho. – Ele gostava
que tu as lesses, que descobrisses qual é a dele. Eu sei que não gostas de ler e sei qual é, se tu
não quiseres...
 – Eu vou lê-las – antecipei-me, beijando-a na testa. Não sei quanto segundos passaram até a
minha irmã se juntar a nós e muito menos até quebrarmos o silêncio cheio de saudade e amor.
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 No dia seguinte, levei um dos livros do meu pai para o autocarro. O Sr. Gilberto conduzia com
o cachecol que a mulher lhe fizera para o Natal, e a minha colega Clara lacrimejava ao devorar
os poemas que o marido lhe dedicara. Eles podiam não ter dinheiro para grandes surpresas,
mas têm paixão pelas subtilezas.
 Eu sentei-me ao lado da jovem do telemóvel sem bateria. Desta vez, trazia umas almofadas
para aquecer as orelhas e lia um pequeno livro com letra graúda e imagens pretas.
 À minha frente, duas mulheres conversavam, animadas, sobre a nova legislação:
 – Sabias que os supermercados vão passar a fazer promoções exclusivas para quem comprar
livros nas suas livrarias? – indagou uma.
 – Só falta oferecem carros a quem folhear uma revista! – brincou a outra.
 Com um sorriso de orelha a orelha, abstive-me do que me rodeava e abri o livro na primeira
página: Para o Luís do pai.




	
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